Depois de trabalhar por anos com jornalismo gastronômico e ter feito doutorado em Teoria da Literatura, sonhava em unir minhas duas paixões. Foi com essa ideia que criei o projeto Da Estante à Mesa: Literatura e Gastronomia, que consiste em jantares com cardápio inspirado nas citações sobre comida de autores clássicos em suas obras. A cada jantar um chef convidado.
O primeiro autor escolhido foi Machado de Assis (1839-1908). O chef, Marcelo Schambeck. E o jantar, no dia 4 de maio de 1916, no Instituto Ling, teve um cardápio que representou o empenho do escritor carioca pela valorização da cozinha brasileira frente à moda da mesa à francesa. A releitura da obra do escritor brasileiro foi o primeiro passo para a construção da pesquisa passada ao chef para, juntos, construirmos a base do jantar. Aqui, conto um pouco do que pesquisei e, no final, está o cardápio apresentado por Marcelo Schambeck.
É preciso ressaltar que não tive aqui a pretensão de analisar a obra de Machado de Assis e sim ir em busca de algumas referências gastronômicas que permitissem realizar um jantar que aproximasse mais os apreciadores da boa mesa à literatura. Bom apetite!
O autor
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, no morro do Livramento, filho de Francisco de Assis, mulato carioca, pintor e dourador de móveis, e de Maria Leopoldina Machado de Assis, senhora de origem portuguesa que servia à casa de sua madrinha. Neto de escravos alforriados, pobre e epilético. Por ter passado boa parte de sua infância entre o sobradão da Chácara de Livramento, de Dona Maria José Mendonça Barreto, a abastada madrinha, e a casa humilde de seus pais, desde cedo Machado de Assis compreendeu as profundas diferenças da vida. Aparece em sua obra a inclinação e o gosto pela fidalguia e o desprezo à pobreza da qual tentará afastar-se.
Cedo, o menino ficou órfão de mãe e em seguida de pai, e cresceu sob o cuidado da madrasta Maria Inês, uma doceira, a quem ajudava vendendo doces nas ruas e nas portas dos colégios que não podia frequentar. Doces que estão presentes nos romances, como em Dom Casmurro.
“…Tínhamos chegado à janela; um preto, que, desde algum tempo vinha apregoando cocadas, parou em frente e perguntou:
– Sinházinha, qué cocada, hoje?
– Não – respondeu Capitu
– Cocadinha tá boa.
– Vá-se embora – replicou ela sem rispidez.
– Dê cá! – disse eu descendo o braço para receber duas.
Comprei-as, mas tive de as comer sozinho; Capitu recusou. Vi que, em meio da crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto pode ser perfeição como imperfeição, mas o momento não é para definições tais; fiquemos em que a minha amiga, apesar de equilibrada e lúcida, não quis saber do doce, e gostava muito de doce. Ao contrário, o pregão que o preto foi cantando, o pregão das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância”. Dom Casmurro.
Seu sonho era ser doutor, mas como não tinha condições de ir à escola, estudou sozinho, em bibliotecas públicas e recebeu aulas de francês e latim de um padre amigo. Foi tipógrafo, revisor, redator e escritor. Escreveu romances, contos, crônicas, ensaios, poesias e teatro. Em 1897, foi eleito presidente da Academia Brasileira de Letras.
Os romances, na primeira fase, têm estilo ditado pelo Romantismo, em que os personagens ambicionam mudar de classe social, ainda que custe sacrificar o amor. Nesta fase, estão Ressurreição, Helena, Iaiá Garcia, A Mão e a Luva. Na segunda, do Realismo, estão presentes a análise psicológica, o pessimismo, a ironia, o humor e a conversa com o leitor. Nessa fase, estão Memórias Póstumas de Brás Cubas (o primeiro romance realista brasileiro), Quincas Borba, Dom Casmurro, Esau e Jacó e Memorial de Aires. A obra de Machado retrata o período entre o Segundo Império e o início da República Velha.
Entre os contos, Contos Fluminenses (conversa com o leitor, ironia e estudos da alma feminina); Histórias da Meia Noite; Papéis Avulsos; Histórias sem data; Várias Histórias; Páginas Escolhidas e Relíquias de Casa Velha.
O crítico
O escritor vivia no Rio de Janeiro e via a alimentação como mediadora de transformações urbanas. Apreciador da boa mesa, seus romances e crônicas retratavam o interesse por restaurantes, confeitarias e cafés. Foi um crítico gastronômico ácido e atento às mudanças de sua época.
Mudanças que tiveram início com a chegada da família real portuguesa ao Brasil e a introdução de itens importados, como a manteiga francesa e o chá, sem falar dos doces portugueses.
Na época, teve início a difusão do hábito de comer fora nas chamadas casas de pasto, confeitarias e hotéis de luxo. Já a República trouxe o apuro da arte culinária e a opulência em jantares, comemorações e saraus. Machado frequentava os grandes salões e registrava tudo o que via, banquetes, preparações de cardápios, etiqueta e hábitos que estavam se refinando. Retratava também os hábitos alimentares das camadas mais pobres, como as quitandeiras negras que vendiam manuê, uma tipo de bolo de fubá com leite de coco, sonhos, pão de ló, café e sucos. As mesmas negras que depois passaram a vender biscoitos e doces mais refinados.
Avesso aos estrangeirismos culinários. Usava de ironia para criticar as influências francesas e inglesas nos hábitos da elite brasileira. Registrava, assim, uma virada na história do gosto da sociedade carioca do século 19. Em sua mesa, preferia sabores da terra e a tradição.
“Não se contentou a minha família em ter um quinhão anônimo no regozijo público; entendeu oportuno e indispensável celebrar a destituição do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou, quando menos, de seus ministros. Dito e feito. Veio abaixo toda a velha prataria, herdada do meu avô Luís Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da Índia; matou-se um capado; encomendaram-se às madres da Ajuda as compotas e marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais, arandelas, as vastas mangas de vidro, todos os aparelhos do luxo clássico”. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Era apaixonado por doces. Uma prova é uma de suas declarações: “O princípio social do Rio de Janeiro é o doce de coco e a compota de marmelo”. Machado adorava tomar chá nas tradicionais confeitarias cariocas da época (Castelões, Ouvidor, Pascoal), consideradas templo de luxo do Rio e frequentadas por políticos e literatos. O cardápio dessas confeitarias incluía éclairs de chocolate, baba ao rum, madeleines, brioches, pasteis de nata.
“Embalde alguns fiéis cidadãos vão ao Castelões, às quatro horas da tarde, absorver duas ou três mães-bentas, excelente processo para abrir a vontade de jantar. Embalde um partido eclético se lança ao uso do pastel de carne com açúcar, conciliando assim, num só bocado, o jantar e a sobremesa. Embalde as confeitarias continuam a comemorar a morte de Jesus, na quinta-feira santa, armando-se das mais vermelhas sanefas, encarapitando os mais belos cartuchos de bombons, que em algum tempo se chamaram confeitos, recebendo enfim um povo ávido de misturar balas de chocolate com as lágrimas de Sião. Eram, e são esforços generosos; mas a corrupção dos tempos não permite fazê-los gerar alguma coisa útil. A grande maioria acode às urgências do estômago com o sanduíche, não menos peregrino que o bife cru, e não menos sórdido; ou com o croquete, estrangeirice do mesmo quilate; e a decadência e a morte do doce parecem inevitáveis.”
Entre seus pratos prediletos, estavam o doce de coco amarelo (com ovo), galinha cabidela e mãe–benta (assado, à base de manteiga, açúcar, ovos, farinha de arroz e leite de coco)
“A vida, por exemplo, comparada a um banquete é ideia felicíssima. Cada um de nós tem ali o seu lugar; uns retiram-se logo depois da sopa, outros do coup du milieu, não raros vão até a sobremesa…” (Machado de Assis, A Gazeta de Notícias, 1894)
Uma de suas questões principais era o questionamento quanto ao uso demasiado de expressões francesas nos cardápios e a influência da culinária daquele país na vida da elite brasileira. Naquela época, os cardápios eram listados inteiramente em francês, sem tradução.
“Nunca comi croquettes, por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei filet de boeuf, é certo, mas com restrição mental de estar comendo lombo de vaca. Nem tudo, porém, se presta a restrições; não poderei fazer o mesmo com as bouchées de dames, por exemplo, porque bocados de senhoras dá ideia de antropofagia, pelo equívoco da palavra”.
“Machado era sóbrio ao se alimentar”, diz Rosa Belluzzo, especialista em Antropologia Cultural e História da Alimentação. “Mesmo porque era muito doente e isso o limitava para comer. De todo modo, homem de seu tempo, acompanhava as transformações do Rio naquela época e isso incluía os hábitos alimentares.”
A mesa na obra
“Era à sobremesa; ninguém já pensava em comer. No intervalo das glosas, corria um burburinho alegre, um palavrear de estômagos satisfeitos; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos, espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta à outra da mesa, atulhada de doces e frutas, aqui o ananás em fatias, ali o melão em talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarelo como uma gema – ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo e do cará. De quando em quando um riso jovial, amplo, desabotoado, um riso de família, vinha quebrar a gravidade política do banquete”. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
“Marcela franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes; depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de aluá. Trouxe-lho a mucama, numa salva de prata, que fazia parte dos meus 11 contos”. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
”Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce «por pirraça»; e eu tinha apenas seis anos”… Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Receitas de confeitaria
Em uma de suas crônicas, Machado de Assis comenta o lançamento de um livro de receitas de confeitaria.
“É fora de dúvida, que a literatura confeitológica sentia necessidade de mais um livro em que fossem compendiadas as novíssimas fórmulas inventadas pelo engenho humano para o fim de adoçar as amarguras deste vale de lágrimas. Tem barreiras a filosofia; a ciência política acha um limite na testa do capanga. Não está no mesmo caso a arte do arroz-doce, e acresce-lhe a vantagem de dispensar demonstrações e definições. Não se demonstra uma cocada, come-se. Comê-la é defini-la. No meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam os espíritos investigadores do nosso século, a publicação de um manual de confeitaria, só pode parecer vulgar a espíritos vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente significativo. Digamos todo o nosso pensamento: é uma restauração, é a restauração do nosso princípio social. O princípio social do Rio de Janeiro, como se sabe, é o doce de coco e a compota de marmelos. Não foi outra também a origem da nossa indústria doméstica. No século passado e no anterior, as damas, uma vez por ano, dançavam o minuete, ou viam ver correr argolinhas; mas todos os dias faziam renda e todas as semanas faziam doce; de modo que o bilro e o tacho, mais ainda do que os falcões pedreiros de Estácio de Sá, lançaram os alicerces da sociedade carioca”.
As crônicas
Nas crônicas, muitas críticas às novidades gastronômicas trazidas de fora:
“Ora qual é nossa situação há dez ou quinze anos? Há dez ou quinze anos, penetrou nos nossos hábitos um corpo estranho, o bife cru. Esse anglicismo só tolerável a uns sujeitos, como os rapazes de Oxford, que alternam os estudos com regatas, e travam do remo com as mesmas mãos que folheiam Hesíodo, esse anglicismo, além de não quadrar ao estômago fluminense, repugna aos nossos costumes e origens. Não obstante, o bife cru entrou nos hábitos da terra; bife cru for ever, tal é a divisa da recente geração”.
“A mesa, que já tinha em cima de si alguns acepipes convidativos, apareceu como uma verdadeira fonte de Moisés aos olhos do ex-chefe de seção. Dois pastelinhos e um croquette foram os parlamentares que Vilela mandou ao estômago rebelado e com os quais aquela víscera se conformou“. As Bodas do Dr. Duarte, em Histórias da Meia-Noite.
“Nas manhãs de um sábado, 25 de abril, andava tudo em alvoroço na casa de José Lemos. Preparava-se o aparelho de jantar dos dias de festa, lavavam-se as escadas e os corredores, enchiam-se os leitões e os perus para serem assados no forno da padaria de frente, tudo em movimento; alguma coisa ia acontecer nesse dia”. As Bodas de Dr. Duarte
O Rio de Machado
Quando nasceu, o Rio de Janeiro era uma cidade imunda que passa por um surto de desenvolvimento forte com o auge da produção de café, nos anos 1850, momento acompanhado de uma intensa sofisticação dos hábitos culturais da cidade, incluindo jornais novos, editoras, livrarias, teatro e música. A partir de 1870, começam a crescer duas campanhas que empolgaram as pessoas sensíveis: a luta pela Abolição da Escravatura e a batalha pela República. Na virada do século, no final da vida de Machado, a cidade conhece uma revolução urbanística, com derrubada de casebres e construções coloniais para dar lugar a prédios de arquitetura requintada, na intenção de tornar o Rio uma metrópole modernizada, uma cidade que queria se ver como europeia, ainda que mantivesse na miséria dezenas de milhares de ex-escravos e pobres em geral.
Vegetarianismo
À frente de sua época, Machado de Assis já defendia o vegetarianismo. Na crônica Carnívoros e Vegetarianos, critica com a ironia o hábito humano de consumir carne. “A arte disfarça a hediondez da matéria. (…) Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarianismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne”, registrou.
Baile da Ilha Fiscal
O baile da Ilha Fiscal foi o último banquete oferecido pela monarquia brasileira em homenagem à chegada do encouraçado chileno Almirante Cochrane ao Rio de Janeiro. Para preparar o banquete, 48 cozinheiros e 50 ajudantes trabalharam por três dias consecutivos. 150 copeiros e 60 trinchadores fizeram o serviço à mesa. Conta-se que foram servidos 12 mil garrafas de bebidas, 12 mil sorvetes, 12 mil taças de ponche, 18 pavões, 80 perus, 300 galinhas, 350 frangos, 10 mil sanduíches, 18 mil frituras, 1.000 peças de caça, 50 peixes, 100 línguas, 25 cabeças de porco recheadas. Machado de Assis incluiu este, que foi um banquete extremamente criticado pelo requinte e desperdício pagos com dinheiro publico, em um de seus livros.
No romance Esaú e Jacó, de 1904, o carioca Machado de Assis ambienta a narrativa na queda do Império e despacha os personagens principais à Ilha Fiscal – o banqueiro Santos e a mulher, Natividade; os filhos gêmeos, Pedro e Paulo; o conselheiro Aires; a mocinha Flora e seus pais, Batista e dona Cláudia, empenhada em ver o consorte presidir de novo uma das províncias, os futuros estados. “Para ela”, relatou o escritor, “o baile da ilha era um fato político, era o baile do ministério, uma festa liberal, que podia abrir ao marido as portas de alguma presidência.”
Ainda que tenha desfrutado do Brasil de lautos banquetes e os analisado com perspicácia, o escritor mantinha a sobriedade, a melancolia. Para ele, perante tudo o que testemunhou, o melhor era “ajuntar os restos do festim, mandar fazer o que a arte culinária chama roupa velha e comê-la com os amigos, sem vinho”.
O JANTAR
Couvert – O chef Marcelo Schambeck recebeu os convidados com couvert (pães e manteiga temperada) e espumante.
Entrada – Para representar a influência portuguesa na mesa carioca, o chef escolheu salada de bacalhau com picles de cebola, rabanete e maionese de alho.
Prato principal – O embate entre a moda da cozinha à francesa e a valorização da mesa brasileira foi simbolizado pelo bouef bourgignon, só que de bochecha de boi, com o toque nacional de farofa de farinha panko e cenoura.
Sobremesa – Outro não poderia ser o doce que representaria as referências gastronômicas de Machado de Assis. O doce de coco era vendido por ele e a madrasta nos tempos de maior pobreza, ao mesmo tempo que era citado como um dos prediletos de alguns de seus personagens e dele mesmo. O bolinho de castanha do Pará representou a brasilidade e o creme de coco com as fitas de coco fresco sua preferência.
Bolo de castanha do Pará
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6 ovos
250g de castanha do Pará
350g de açúcar
60g de farinha de rosca
Como Fazer
- Bata as gemas com açúcar até ficar um creme claro.
- Adicione a castanha do Pará moída até o ponto de farinha e misture.
- Bata as claras em neve e misture delicadamente.
- Junte a farinha de rosca, misturando delicadamente.
- Coloque em forma untada e enfarinhada.
- Leve ao forno preaquecido, a 180 graus, por cerca de 30min.