Foi com o projeto “Da Estante à Mesa: Literatura e Gastronomia” que dei início a uma pesquisa que buscava na obra de autores clássicos as referências à cozinha que viriam a inspirar chefs de cozinha a criar um cardápio para um jantar especial. A pesquisa expandiu e o resultado está apresentado aqui.
A primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras, Raquel de Queiroz era apreciadora da boa mesa, adorava comer e observar o que os outros comiam. Além das referências gastronômicas na obra da escritora, é possível conhecer um pouco da cozinha do sertão por intermédio dos sabores servidos na fazenda em que viveu, no Ceará, registrados no livro O Não Me Deixes: Suas Histórias e Sua Cozinha.
Com 19 anos, a escritora publicou O Quinze, o primeiro romance. Ficou conhecida pela literatura produzida a partir da fome, de realidades concretas. O mundo das obras de Raquel inclui o sertão nordestino, com a seca, o cangaço, o fanatismo e a figura do beato. E, ainda, o Rio de Janeiro da pequena burguesia.
Enquanto a Literatura de Raquel de Queiroz coloca a cozinha como o lugar da mulher. Suas mulheres de papel são fortes, determinadas, corajosas na luta contra a aridez do sertão, contra a imposição de uma posição de subserviência que elas não aceitam. Maria Moura, em Memorial de Maria Moura, é uma mulher lançada ao sertão pelo sofrimento.
Doralina, de Dôra Doralina, representa o quadro histórico da formação brasileira, a aridez do Nordeste e o sonho do progresso no Rio de Janeiro. Em ambas as obras, a miséria e a fome são personagens.
A cozinha do sertão é como a literatura de Raquel: forte e generosa. É simples, rústica, ancestral e elementar. Os ingredientes são valorizados na integridade, é uma cozinha rica em sobriedade.
O Não Me Deixes, é um registro da cozinha da autora, seus gostos e preferências, é repleto de lembranças, com receitas de família e outras herdadas das cozinheiras Antônia e Nise. É a reorganização da cozinha do sertão. O hábito alimentar do sertanejo, baseado no feijão com arroz, na carne (caça, galinha, carne de porco, boi e bode) e na farinha de mandioca, está ali representada. Assim como a carne cozida ou assada no espeto, a preferida do caboclo.
O Feijão
“O feijão, base da alimentação do sertanejo, come-se de todas as maneiras: verde, maduro e seco. O verde come-se ainda na vagem, cortado em pedaços pequenos. O maduro (que já se pode debulhar) come-se como o seco: cozido e temperado. O tempero mais apreciado para o feijão é a nata do leite, que em geral é retirada do leite com que se faz o queijo. O toucinho de porco, em pedaços ou frito em torresmo, é complemento altamente apreciado por todos, e a gordura das carnes é especialmente valorizada”. O Não Me Deixes
“Numa casa uma mocinha lhe deu um prato de feijão”. Dôra, Doralina
“Eu comia, assada na brasa, banda de nambu ou de préa, ou de tatu; ou uma traíra, da lagoa, temperando o feijão.” Memorial de Maria Moura
“O baião-de-dois – traduzindo: feijão com arroz – é um dos pratos tradicionais da cozinha nordestina”. O Não Me Deixes
“Mas logo acabado o serviço foram comer feijoada que eu tinha preparado; beberam antes e durante e na maioria ficaram bêbados”. Dôra, Doralina
Milho
“O milho, depois do feijão, é um dos alimentos básicos do sertanejo: come-se verde, cozido ou assado na brasa, em forma de canjica (curau), pamonha, bolos, cuscuz”. O Não Me Deixes
Carneiro
“De bicho grande, matam-se os caprinos e, mais raramente, os carneiros. Carne de bode, a mais acessível, por isso mesmo seja menos apreciada. No entanto, cozido de costela de bode ou assado de um pernil são quase sempre deliciosos. Do carcaça (do cordeiro), separam-se o espinhaço e as costelas. O espinhaço, a carne do pescoço e s canelas vão para o cozido, junto com legumes. As duas pás e as costelas são assadas no forno. O coxão será aferventado e só depois irá para o forno”. O Não Me Deixes
“Almocei um carneiro gordo que Antônio tinha abatido pra mim. Tanto que eu prometera ao Comandante um almoço de carneiro: o cozido dos canelões e do espinhaço, o sarapatel, os bifes de fígado, o coxão assado no forno. E no dia seguinte a buchada”. Dôra, Doralina
Carne seca
“O vaqueiro foi aos alforjes e veio com uma manta de carne de bode, seca, e um saco cheio de farinha, com quartos de rapadura dentro. Já as mulheres tinham improvisado uma trempe e acendiam o fogo. E a carne foi assada sobre as brasas, chiando e estalando o sal… os meninos metiam as mãos na farinha, rasgavam lascas de carne, que engoliam, lambendo os dedos”. O Quinze
“Fizemos um banquete de carne seca, assada no caco, com pirão mole e molho de pimenta. A velha Libânia sabia mesmo cozinhar – como dizia, bastava lhe dar com quê!”. Memorial de Maria Moura
O peixe
“Um dos elementos básicos da alimentação sertaneja, além da carne de bode e do frango de galinheiro, é o peixe. Peixes de água doce, claro, sendo que o rei deles é o curimatã”. O Não Me Deixes
“Como numa sexta-feira em que o jantar foi curimatã de forno e todo mundo sabe que curimatã é o peixe mais reimoso do mundo, segundo Xavinha não se esqueceu de me lembrar”. Dôra, Doralina
“E a comida era boa, peixe de rio, galinha e ovos fritos se quisesse, e carne; logo nós, que vínhamos daquelas fomes pelos caminhos desertos e as incertezas dos pregos de biela!”. Dôra, Doralina
“Então o Comandante pediu que eu pelo menos tomasse um guaraná. E nesse momento o tarefeiro trouxe um prato, e o Comandante disse que, supunha, aquele peixe eu não conhecia, esse sim era de rio e se chama surubim. E seu Brandini se meteu logo, não me deixando responder: – Pirarucu no Pará ela detestou”. Dôra, Doralina
“Aquele pirarucu era salgado, não gosto de peixe seco, pirarucu então, só lembra tempo de seca. Você não sabe que durante a seca o governo nos mandava fardos e fardos de pirarucu salgado? Acho ardido, horrível.
Enquanto que aquele surubim era fresco, cada posta enorme, ao molho de coco, delicioso. O resto da minha vida nunca mais deixei de comer surubim quando encontro, infelizmente, é raro”. Dôra, Doralina
O gosto de Rachel de Queiroz pela cozinha portuguesa era tanto que o bacalhau virou estrela em prato nordestino: frigideira de siri do rio com bacalhau (bacalhau virado).
“Patrão Davino, muito magro e pequenino, ia e vinha da casa para o grill servindo as bebidas; no fogão a óleo da cozinha, que cheirava forte a graxa queimada, a bacalhoada cozinhava numa panela tão grande que parecia de quartel.” Dôra, Doralina
“Afinal veio a bacalhoada que devia estar boa para quem gosta, nadando em molho, com muita pimenta e muito azeite português que eu não sei onde eles arranjavam em tempo de guerra, e o infalível garrafão de vinho tinto”. Dôra, Doralina
“Aí vieram os convites para um churrasco na Quarta-feira de Cinzas, – churrasco não, que é de carne, corrigiu a velha – uma bacalhoada para festejar o começo da Quaresma”. Dôra, Doralina
As aves
A galinha, além do bode, é a carne mais acessível do sertanejo. Toda a casa do sertão tem seu galinheiro. A galinha de cabidela, cozida e com molho à base do sangue da ave, é um prato comum na mesa do sertanejo, também da autora e das personagens da literatura de Raquel de Queiroz. Outra criação, aí de fazendas mais abastadas, é a de patos, perus e gansos.
“Hoje, quando as comadres me trazem um pato gordo de presente, trato logo de fazer uma das minhas receitas. Pato com arroz, por exemplo, é uma das minhas preferidas”.
“Mata-se o pato, que, depois de bem limpo, flambado e cortado, é deixado algumas horas em vinha-d’alhos. Com uma boa colher de manteiga faz-se um refogado com todos os temperos (cebola, alho, coentro, ebolinha, tomate sem pele nem sementes, tudo bem picadinho). Refoga-se o pato e, quando estiver dourado, adiciona-se água quente. Deixa-se cozinhar um pouco até que se obtenha um bom caldo. Acrescenta-se então o arroz, para cozinhar nesse caldo junto com os pedaços de pato. Quanto o arroz estiver pronto, o pato já deverá estar macio, mas não desmanchado. Tampa-se a panela até a hora de servir”. O Não Me Deixes
Rapadura
Para o sertanejo da literatura a rapadura não servia apenas para adoçar, mas também para aplacar a fome.
“Os meninos, passado o furor do apetite, exigiam com força o que beber; gemiam, pigarreavam, engoliam mais farinha, ou lambiam algum naco de rapadura, entretendo com o doce a garganta sedenta”. O Quinze
“Mãe , eu queria comer… me dá um taquinho de rapadura!. O Quinze
“O vaqueiro saiu com a rede, resoluto: – Vou ali naquela bodega, ver se dou jeito… Voltou mais tarde, sem a rede, trazendo uma rapadura e um litro de farinha”. O Quinze
“Vai dormir, dianho! Parece que tá espritado! Soca um quarto de rapadura no bucho e ainda fala em fome! Vai dormir!”. O Quinze.
“Me deram também um prato com pirão de peixe cozido, um taco de rapadura”. Memorial de Maria Moura
A farinha
“Às vezes paravam num povoado, numa vila. Chico Bento, a custo, sujeitando-se às ocupações mais penosas, arranjava um cruzado, uma rapadura, algum litro de farinha”. O Quinze
“E Cordulina, botando a vergonha de lado, com o Duquinha no quadril – que as privações tinham desensinado de andar, e agora mal engatinhava – dirigia-se às casas, pedindo um leitinho para dar ao filho, um restinho de farinha ou de goma para fazer uma papa”. O Quinze
“Cordulina foi à sua trouxa, e tirou de dentro um resto de farinha e um quarto de rapadura, última lembrança da comadre Doninha”. O Quinze
“Era mesmo dela, quando vendia tapioca na rua. Mas ultimamente andava faltando o coco para as tapiocas.” Memorial de Maria Moura
Doces
Os pratos típicos e a doçaria compõem o foco da autora; em especial, as compotas são o centro da atenção como se a capacidade de fazê-las concedesse um status especial e central no grupo:
“A mesa do Não Me Deixes sempre foi pródiga em doces, pois a dieta do nordestino é rica em açúcar … doce de leite, de coco, de mamão verde com coco, de goiaba, de banana. Outro doce comum no sertão é o doce de espécie, porque leva especiarias, faz-se com gergelim ou castanha de caju”. O Não Me Deixes
“Depois do doce de abóbora com coco veio o café, e as meninas com Seu Brandini voltaram para o violão”. Dôra, Doralina
Em O Não Me Deixes, as receitas estão representadas por ingredientes típicos da culinária nordestina, como o queijo de coalho, o milho, a castanha de caju e a farinha, além de receitas tradicionais da parte doce dessa culinária (o pão de ló, o bolo de milho, a canjica, a pamonha, o mugunzá).
Mungunzá
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500g de milho branco 2 litros de água 1 pau de canela 10 cravos da índia 200ml de leite de coco 1 lata de leite condensado 1/2 lata de açúcar 2 latas de leite 1/2 colher (chá) de sal canela em pó
Como Fazer
- Deixe o milho de molho em água, de um dia para o outro.
- No dia seguinte, escorra a água e coloque o milho na panela de pressão.
- Junte 2 litros de água, a canela em pau e o cravo e deixe cozinhar por cerca de 30min ou até que fique macio.
- Abra a panela e junte o leite de coco, o leite condensado e o sal e leve ao fogo, sem tampar, deixando cozinhar por cerca de 15min até engrossar.
- Sirva polvilhada com canela em pó.
“Zeza acendia o forno de barro no telheiro do quintal, e era preciso o maior cuidado para o bolo não sentar se o forno estava frio, ou os sequilhos não virarem carvão, se estava quente demais”. Dôra, Doralina
“Mas como eu ia contando, naquela manhã nós estávamos na mesa do café, me lembro que tinha um prato de sequilhos e eu rodava distraída a colherinha na xícara de café com leite e escutava o galo-de-campina que todo dia, àquela hora, vinha cantar nos galhos do jucá junto à janela; por isso me assustei ouvindo a voz de Senhora”. Dôra, Doralina
“O mundo todo muda, mas aquela linha de trem não muda nunca. Cada estação era a mesma invariável dos meus tempos de menina. Olha a banana seca de Siqueira! Olha as mariolas!”. Dôra, Doralina
“Comi frutas, banana seca, bolo de milho que uma mulherzinha vendia enrolado em folha de bananeira, num tabuleiro coberto com uma toalha muito alva”. Dôra, Doralina
“- Deus te abençoe, fio. Eu também sei fazer cocada puxa. Só me falta ter com quê!”. Memorial de Maria Moura
“Para mim, e para todos os que gostam de doces, existe um bolo especialíssimo que, segundo meu neto, é a joia da coroa, é o bolo Luiz Felipe”. O Não Me Deixes
Bebida
“Cordulina pediu: – Chico, vê se tu arranja uma aguinha pro café”. O Quinze
“A estação enxameando de guarda-freios, de bagageiros, de passageiros alegres, que rodeavam formigando a sua mesa, na ansiedade de chegar bem depressa, de receber de suas mãos a xícara cheia de café, embora requentado e engulhento”. O Quinze
“ Conceição, minha filha, manda fazer café e traz um calicezinho de licor pra Vicente.” O Quinze
“- Sinhá Eugênia, cadê aquela moçota que vendia café mais você?”. O Quinze
“Eu, por mim, já deixava disso muito tempo antes; uma vez dormi e acordei, quando passei por Senhora dei bom dia e ela não reclamou e quando fui dormir dei boa noite; só no dia seguinte, na mesa, mexendo o café, foi que ela disse:
Que história é essa de bom dia? Cadê a benção?”. Dôra, Doralina
“E marchou para eles, com o coração estalando de pena, lembrando-se da última vez que os vira, num passeio às Aroeiras feito em companhia do pessoal de Dona Idalina: Chico Bento, chegando do campo, todo encourado, e Cordulina muito gorda, muito pesada, servindo café às visitas em tigelinhas de louça”. O Quinze
“Quem vinha chegando era Antônio Amador depois de tomar um café na janela da cozinha como era seu costume, a toda hora”. Dôra, Doralina
Para acompanhar o café
“Numa manhã em que acompanhei Luzia com o prato de cuscuz com leite para o meu doente, Delmiro me disse que se sentia quase bom”. Dôra, Doralina
“De manhã bem cedo eu ia apanhar o pão – nesse tempo se apanhava o pão na porta! – e ela apanhava o seu na mesma hora e eu lhe dava o meu bom dia e ela mal rosnava o bom dia dela, azeda, chinela roída, cabelo muito crespo em pé na testa – D. Alegria!”. Dôra, Doralina
Cardápio refinado
Os pratos refinados aparecem como a comida da fazenda em dia de receber visitas ou servem como registro de requinte ou pedantismo de personagens.
“Até a comida da mesa ficava mais simples com Laurindo fora, porque eu só gostava de beliscar bobagem e, Senhora, o seu alimento era na base do leite – coalhada, jerimum ou cuscuz com leite, mugunzá, queijo com café, e sendo tempo de milho verde, a canjica e a pamonha.
Laurindo na mesa, vinham peixes de forno, as cabidelas de galinha, as caças que ele matava, as buchadas de carneiro que eu detestava.
E cerveja refrescando à janela na meia molhada, e uma garrafa de vinho que ficava aberta de um dia para o outro, azedando no aparador”. Dôra, Doralina