Esse espaço é como um convite para me acompanhar num papo regado com uma xícara de café passado no coador de pano e pães de queijo bem quentinhos. Gostaria que fosse como uma conversa entre amigos. É só chegar
Ana Carolina não se considera exigente. Pelo contrário, acha até que é condescendente com as pessoas logo que as conhece. Procura ignorar os pequenos defeitos. Parece que tem olhos de lince para as falhas humanas. Foi assim com Victor Hugo. Odeia gente que tem letras a mais no nome. Mas isso é outro assunto. Melhor deixar pra lá.
Victor, com o tal c a mais, tinha mãos úmidas, que ofereciam apertos molhados. O que para ela era sinal de insegurança, nervosismo até. O que veio a ser confirmar na hora de escolher o prato no restaurante italiano. Como alguém pode ter dúvidas frente a massas? Victor, concentrado, lia e relia as opções. Carolina ficava imaginando que o papel cartonado deveria estar úmido com o suor daquelas enormes mãos molhadas. E pior, ele estava sentado a sua frente. Era impossível prestar atenção em outra coisa.
Todos tinham feitos os pedidos, quando finalmente as mãos fecharam o cardápio e seu dono solicitou nhoques à romana. Surpresa. Ela jamais imaginaria que esse fosse o prato escolhido. Não o nhoque de semolina (sêmola de trigo) cozida no leite. Carolina conhecia bem a receita. Quantas lembranças.
Primeiro, em uma panela grande levava a ferver 1 litro de leite. Então, acrescentava 250g de semolina, mexendo vigorosamente com um fouet. Juntava 20g de manteiga e continuava mexendo até que estivesse cozida. Lembrava a polenta da nonna. Retirava do fogo, acrescentava mais 50g de manteiga e 40g de um verdadeiro parmesão ralado na hora. A massa cremosa estava tentadora, mas era preciso deixar amornar para juntar 2 gemas bem amarelinhas. Depois de bem misturado, espalhava em uma forma untada, deixando com 1cm de altura e esperava esfriar. Com a borda de um copo, cortava pequenos círculos que seriam dispostos em um refratário untado, cuidando que ficassem apenas levemente sobrepostos. Em seguida, cobria com 70g de manteiga derretida e mais 40g do tal parmesão. 15min de forno a 200 graus eram suficientes para tornar esse o prato dos deuses. Quantas vezes o viu ser preparado.
Perdida em devaneios sobre a receita, Ana Carolina não percebeu a chegada de sua massa à carbonara, que considerava a perfeição em quatro ingredientes: ovo, bacon (na verdade pancetta), massa e queijo. E o toque de transgressão: uma generosa dose de pimenta preta. Só voltou a si quando teve a atenção despertada pelo suave verter do Chianti na taça de Victor. Uma escolha perfeita: a cremosidade e a rusticidade do nhoque ganhariam harmonia com os toques terrosos daquele vinho. Ela quase podia sentir a junção dos sabores e dos aromas. Agora, Victor, mesmo com o c a mais e as mãos úmidas, lhe parecia o mais atraente dos homens.
Lembrou de Francesco, o italiano de voz doce e cabelos encaracolados, que sussurrava delícias em seu ouvido. Do perfume do tagliatelli ao molho de tomate e o Sangiovese, a acidez de ambos, prato e vinho, e os mesmos sabores frutados. O tiramissú, mimo para compensar as brigas pelo ciúme infundado. E aquele cheiro de café e chocolate que acabou enjoativo, como a fúria possessiva e os palavrões gritados antes das estrondosas batidas de porta. Francesco se foi com as massas perfumadas, os vinhos perfeitos e os tiramissús imperdoáveis.
O leve toque úmido das mãos de Victor a fez voltar à realidade, à massa fria e esquecida no prato. Lembranças de um passado que queria esquecer e que Victor, aquele do c a mais, fez seu coração relembrar.
Ana Carolina não percebia mais ninguém. Só os nhoques à romana, o Chianti, os cabelos encaracolados de Victor – como não os havia percebido, ela que tem olhos de lince – e a voz doce, insuportável. Perplexa, viu chegar à mesa um pequeno prato adornado com uma pequena gôndola de chocolate, que remetia, é claro, a Veneza. Não, mil vezes não. O tiramissú veneziano. Sentiu que o ar lhe faltava. Os olhos ficaram úmidos como as mãos de Victor. Aquilo era demais pra ela, assim como o c no nome do homem a sua frente. Nada mais lhe restava fazer. Num impulso, recolheu a bolsa, disse que ia ao toalete. E fugiu discretamente do restaurante. Até hoje pensa quem pagou a sua conta.