Jorge Amado talvez seja, dos escritores brasileiros, o mais difícil de ser representado à mesa devido à grande extensão de citações gastronômicas em sua obra. Tamanha a presença da cozinha nas páginas dos livros que duas obras, escritas pela filha Paloma Jorge Amado, foram lançadas reunindo algumas das receitas ou ingredientes que fizeram parte da literatura do escritor baiano: A Comida Baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor e As Frutas de Jorge Amado.
Pelas mãos dos personagens, Jorge Amado imortalizou os segredos da cozinha baiana. A mesa não servia apenas para revelar receitas, reunia senhores de cacau, caboclos, vadios, prostitutas, madames, religiosos, brancos e negros. Um caldeirão do Brasil mestiço social e culturalmente. Pelas refeições ou na falta delas, passavam gente simples, pobre, que revelava as delícias e o valor da baianidade na cozinha para senhoras ricas metidas a francesas.
Baseado na obra de Jorge Amado, o quarto jantar do projeto Da Estante à Mesa foi preparado pelo chef Floriano Spiess, no dia 11 de novembro de 2016, no Instituto ling.
O acarajé
A comida começou a aparecer já em seu primeiro livro. Em O País do Carnaval, eram apenas as baianas nas ruas vendendo seus quitutes.
“Uma preta, na rua, rebolando as ancas, gritava: – Amendoim torrado! Acarajé, abará”. O País do Carnaval.
Depois, surge em muitas outras histórias, como em O País do Carnaval; Cacau; Suor; Jubiabá, Gabriela, Cravo e Canela; A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água, Os Pastores da Noite; Dona Flora e Seus Dois Maridos; Tenda dos Milagres; Tereza Batista, Cansada de Guerra e O Sumiço da Santa.
Comida de santo
Em Jubiabá aparece pela primeira vez a comida ritual, a cozinha baiana mais africana, a que homenageia o santo, que o devoto oferece como obrigação ao candomblé. É quando o dendê começa a marcar presença na literatura de Jorge Amado.
“Do morro desciam as outras pastoras, vinham Gabriela da casa de Dona Arminda, já não eram somente pastoras, eram filhas de santo, iaôs de Iansan. Cada noite seu Nilo soltava a alegria no meio da sala. Na pobre cozinha, Gabriela fabricava riqueza: acarajés de cobre, abarás de prata, o mistério de ouro do vatapá”. Gabriela, Cravo e Canela.
“– Contam que, certa feita, uma iaba, sabendo da fama de mulherengo de Pedro Archanjo, resolveu lhe dar uma lição, fazendo dele gato e sapato e para isso virou na cabrocha mais catita da Bahia…
– Iaba? Que é isso? – instruía-se Arno.
– Uma diaba com o rabo escondido.
Jantaram ali mesmo, no bar, peixe frito no azeite amarelo, cerveja gelada e copiosa para regar o dendê; lamberam os beiços. Por duas vezes, em meio à refeição, o Major propôs rodadas de cachaça para ‘desfeitar a cerveja’.” Tenda dos Milagres
Moqueca
A moqueca é personagem de diferentes livros: em Mar Morto, Capitães da Areia.
Em Gabriela, Cravo e Canela, as referências aos pratos passam a ser mais detalhadas, com cheiros, cores e texturas. Para Gabriela, uma forma de amor é cozinhar para Nacib. Então, nada mais natural do que o turco, depois da separação, sinta saudades primeiro da cozinheira.
Moqueca de siri-mole era o prato predileto de Vadinho, em Dona Flor e Seus Dois Maridos. E essa é uma das receitas que a personagem ensina no curso de culinária:
“Aula teórica: Ingredientes(para 8 pessoas): uma xícara de leite de coco, puro, sem água; uma xícara de azeite de dendê; um quilo de siri-mole. Para o molho: três dentes de alho; sal a gosto; o suco de um limão; coentro, salsa; cebolinha verde; duas cebolas; meia xícara de azeite doce; um pimentão; meio quilo de tomates. Para depois: quatro tomates; uma cebola; um pimentão.
Aula prática:
Ralem duas cebolas, amassem o alho no pilão;
Cebola e alho não empestam, não senhoras, são frutos da terra, perfumados.
Piquem o coentro bem picado, a salsa, alguns tomates, a cebolinha e meio pimentão. Misturem tudo em azeite doce e á parte ponham esse molho de aromas suculentos (essas tolas acham a cebola fedorenta, que sabem elas dos odores puros? Vadinho gostava de comer cebola crua e seu beijo ardia). Lavem os siris inteiros em água de limão, lavem bastante, mais um pouco ainda, para tirar o sujo sem lhes tirar porém a maresia. E agora a temperá-los: um a um no molho mergulhando, depois na frigideira colocando um a um, os siris com seu tempero. Espalhem o resto do molho por cima dos siris bem devagar que esse prato é muito delicado. (Ai, era o prato preferido do Vadinho).
Tomem de quatro tomates escolhidos, um pimentão, uma cebola, tudo por cima e em rodelas coloquem para dar um toque de beleza. No abafado por duas horas deixem a tomar gosto…” Dona Flor e Seus Dois Maridos.
Vatapá
O vatapá de Dona Flor dos Guimarães, Florípedes Piava Madureira em Dona Flor e Seus Dois Maridos, é o prato mais famoso das obras de Jorge Amado. A receita varia de acordo com o cozinheiro. No livro, a cozinheira de mão-cheia preparava com peixe ou galinha, caldo de peixe e pão dormido. Outros, utilizam caldo de galinha e farinha de arroz ou com camarões frescos e postas de garoupa. Tem ainda quem use fubá e pimenta malagueta. Aqui, parte da receita de Dona Flor:
“Me deixe em paz com meu luto e minha solidão. Não me falem dessas coisas, respeitem meu estado de viúva. Vamos ao fogão: prato de capricho e esmero ó vatapá de peixe (ou de galinha), o mais famoso de toda a culinária da Bahia. Vatapá para servir a dez pessoas (e para sobrar como é devido). Tragam duas cabeças de garoupa fresca – pode ser de outro peixe, mas não é tão bom. Tomem do sal, do coentro, do alho e da cebola, alguns tomates e o suco de um limão.
Quatro colheres das de sopa, cheias com o melhor azeite doce, tanto serve português como espanhol; ouvi dizer que o grego inda é melhor, não sei. Jamais usei por não encontrá-lo à venda…” Dona Flor e Seus Dois Maridos.
Os doces
A doceria baiana é uma junção de doces de origem portuguesa com compotas de frutas, cocadas e sorvetes de frutas. Na obra de Jorge Amado, é possível encontrar arroz e canjica doces, baba-de-moça, ambrosia, quindim.
“Ainda bem que a santa senhora assim pensava, pois com a religião e as pitanças, as chocolatadas, as gemadas, a ambrosia, a cocada-puxa – dona Ernestina virava um sapo-boi, enquanto o coronel, devido à idade, tornava-se exigente”. Tocaia Grande
“Ao fim da aula do turno matutino, quando tiravam a sorte para escolher quem levaria a compoteira de baba-de-moça para casa, dona Flor sentiu sua presença mesmo antes de vê-lo. Até então não se acostumara com o fato de ser apenas ela a enxergá-lo e, ao dar com Vadinho junto à mesa, todo nu e exibido, estremeceu. Mas, como as alunas não reagiam ao escândalo, recordou-se de seu privilégio: pra os demais seu primeiro marido era invisível. Ainda bem”. Dona Flor e Seus Dois Maridos
“Na cozinha fritam montanhas de bolinhos de bacalhau e de pastéis. Três ajudantes, à base de polpudas gratificações, duas primas e uma cunhada vieram auxiliar Eunice, fiel pau-para-toda-obra a serviço da família Moreira desde tempos imemoriais. Uma delas, especialista em doces, se encarregou de preparar quindins, fios-de-ovos, olhos-de-sogra, bem-bocados, brigadeiros. Dona Conceição, ao passar, mastigou um quindim, está uma delícia.” Farda, Fardão, Camisola de Dormir.
“E sobremesa? Melhor não falar, só espécies de cocada havia cinco”. Teresa Batista, Cansada de Guerra
As frutas
Nas obras de Jorge Amado, as frutas estão presentes em forma de doce, refresco, suco, sorvete ou em receitas elaboradas. As principais são o cacau, a jaca e a banana, seguidas por muitas outras, como a manga, o abacaxi, o caju e muitas outras.
“Planejavam plantar um pomar para cultivar laranjas – a de umbigo nem o mel se lhe compara no sabor, a d’água e a seca, a da terra, amarga como fel mas com a casca faz-se doce mais gostoso –, limão e tangerina, além das frutas que ali cresciam ao deus-dará, tantas e incomparáveis: jaca, manga, abacate, mamão, cqju, mangaba, pitanga, cajá, jaca-de-pobre, fruta-do-conde, condessa e pinha, groselha, jambo e carambola, goiaba e araçá, muitas e muitas outras, nem de longe a lista se esgotou”. Tocaia Grande.
Cacau
O cacau está em Jubiabá; Cacau; Terras do Sem Fim; São Jorge dos Ilhéus; Seara Vermelha; Gabriela, Cravo e Canela; Os Pastores da Noite; Dona Flor e Seus Dois Maridos; Tenda dos Milagres; Teresa Batista Cansada de Guerra; Tieta do Agreste; Tocaia Grande e O Sumiço da Santa.
O cacau é a que mais identifica o escritor e a obra. Não apenas a fruta, mas a economia gerada por ela, a luta por terras, o poder dos coronéis, o comportamento social, vida e morte.
“Nem os garotos tocavam nos frutos do cacau. Temiam aquele coco amarelo, de caroços doces, que os trazia presos àquela vida de carne-seca e jaca. O cacau era o grande Senhor a quem até o coronel temia”. Cacau.
“Sob o sol ardente, o dorso nu, as foices presas em varas longas, os trabalhadores colhiam os cocos de cacau. Caíam no baque surdo os frutos amarelos, mulheres e crianças os reuniam e os partiam, com tocos de fação. Amontoavam-se os grãos de cacau mole, brancos de mel, eram metidos nas caçuás, levados para os cochos no lombo dos burros”. Gabriela, Cravo e Canela.
Jaca
A fruta é citada nos livros Cacau; Terras do Sem Fim; Gabriela, Cravo e Canela; Os Pastores da Noite; Teresa Batista Cansada de Guerra; Tieta do Agreste; Tocaia Grande e O Sumiço da Santa.
“Jaca! Jaca! Os garotos trepavam nas árvores como macacos. A jaca caía – tibum – eles caíam em cima. Daí a pouco restava a casca e o bagunço que os porcos devoravam gostosamente”. Cacau.
“Rasgavam com as mãos potentes a jaca mole, amarela ânfora de mel; com os dedos retiravam os bagos suculentos, o sumo escorria-lhe pelo canto da boca”. Tocaia Grande.
Banana
Nas mais variadas formas: in natura, assada, cozida, frita, como doce, a banana aparece em Cacau; Jubiabá; Terras do Sem Fim; São Jorge dos Ilhéus; Seara Vermelha; Gabriela, Cravo e Canela; Os Pastores da Noite; Teresa Batista Cansada de Guerra; Tieta do Agreste; Tocaia Grande e O Sumiço da Santa.
“Mãezinha, como se chama aquele doce de banana da casa de dona Aída, você ficou de me dizer..
– Doce de puta, minha filha. Dizem que tem desse doce em tudo que é casa de rapariga”. Tieta do Agreste.
“Em dias de gula e refinamento, numa ponta de galho aparado a canivete enfiava uma banana-da-terra e a tostava até vê-la cor de oiro, rasgada pelo calor. Para evitar que se queimasse, a envolvia numa camada de farinha, depois de descascá-la: gostosura”. Tocaia Grande.
O JANTAR
Entrada – Mini acarajé recheado com vatapá, camarão seco, caruru e vinagrete de tomate verde, harmonizado com Cava Don Ramon Demi-sec.
Prato principal – Mini abobrinha recheada com bobó de siri catado, moqueca de robalo de camarões, arroz cozido no leite de coco e farofa de dendê. A harmonização foi com o vinho Regia Colheita DOC, do Alentejo.
Sobremesa – Um trio de delícias encerrou o jantar: quindim da mulata Giuli, arroz de leite do chef e mini cocada, harmonizadas com Nederburg Noble Late Harvest.
Quindim
ImprimirIngredientes
100g de coco seco ralado sem açúcar
200ml de água morna
10 gemas
300g de açúcar
1 pitada de sal
1 colher (sopa) de essência de baunilha
40g de manteiga sem sal em temperatura ambiente
açúcar cristal para polvilhar
Como Fazer
- Preaqueca o forno a 180 graus.
- Deixe o coco hidratando na água morna por 10min.
- Peneire as gemas para retirar a película que as recobre.
- Junte o coco hidratado, o açúcar, o sal, a essência de baunilha e a manteiga.
- Misture, sem bater, só o suficiente para ficar homogêneo.
- Unte forminhas para quindim com manteiga e polvilhe com açúcar cristal.
- Preencha as forminhas com a mistura e leve para assar em banho-maria por cerca de 1h.
- Vire a forma no forno, na metade do tempo de cozimento.
- Deixe amornar e desenforme com a ajuda de uma faquinha.
- Leve para gelar.
Notas
* Desenforme o quindim morno. Se estiver quente, pode quebrar. E frio, pode grudar.