Foi em um grupo de escrita gastronômica que surgiu o desafio de escrever um texto de ficção. Brincadeira responsável pelo nascimento de uma personagem: Ana Carolina. Ousei deixar aqui o primeiro de algumas aventuras dessa jovem.
Texto 1
“Se você acredita em amor à primeira vista tem que concordar que existe antipatia à primeira vista. Ana Carolina detestou Roberto desde que o viu sentado sob aquele enorme guarda-sol vermelho e branco, saboreando um Curaçau Blue. Entre uma risada e outra ao telefone – o que seria tão engraçado? -, ele sorvia com prazer aquela bebida azul repugnante. Falava, sorria, sugava longos goles pelo canudo listrado, gargalhava e voltava a tomar aquela mistura esquisita. Como pode alguém gostar de uma bebida azul?
Olhando para Roberto e o copo suado do líquido azulado, Carolina chegava a sentir o gosto intragável de bala de anis. Lembrava dos arrepios que sentia, quando, criança, no escuro de cinema, desavisada, pescava do pacote de delicados uma daquelas indesejáveis balinhas azuis. A vontade era cuspir, uma, duas, três vezes. A mãe, ao lado, a fazia engolir. Onde se viu uma menina ficar por aí cuspindo coisas no chão. E não adiantava tentar se desfazer dela disfarçadamente. Dona Laura parecia ter um radar para balinhas horrorosas pescadas sem querer. Será que ela sentia o cheiro do anis? Êta faro, meu Deus!
Acho que foram os delicados do cinema que deixaram Carolina traumatizada com comidas ou bebidas azuis. As irmãs, para implicar com a menina, ainda cantavam ‘no escurinho do cinema, chupando drops de anis’. Eca, ela pensava. E tem quem garanta que o aroma de anis teria o poder de seduzir as pessoas.
Mas, voltando ao Roberto. Nascia ali a antipatia que, para ela, não era nada gratuita.
O destino, porém – Carolina acreditava em destino tanto quanto em antipatia à primeira vista -, fez com que fosse apresentada a seu desafeto na casa de amigos em comum. Roberto falante e sempre risonho – como ela detestava esse sorriso – tentou ser simpático e receptivo, mas Carolina não conseguia esquecer do Curaçau Blue. Mesmo que ele tivesse nas mãos um simples suco de laranja. A anfitriã insistia de todas as maneiras em aproximar Carolina de Roberto. Apostava que eles formariam um belo casal. A jovem queria sair dali, fugir, como dos delicados de anis. No entanto, não queria fazer uma desfeita para a amiga. E pior, Roberto parecia interessado.
Eu tenho impressão de que já nos conhecemos, puxou conversa. Acho que não, escapuliu. Ele buscava na memória onde a havia visto. E lembrou. No final de tarde, na praça Florida, você estava com um vestido amarelo que ofuscava até o sol. Imagem que jamais irei esquecer: o contraste dos cabelos negros como asa de graúna com essa pele tão clara. Você estava linda. Aliás, hoje também está. Ela não se comove com o galanteio. E lembra do momento com repulsa pelo gosto dele por Curaçau Blue. Não levando em conta que o licor não é de anis, e sim de laranja. Não importa, lembra anis. E ela detesta com toda a sua força.
Roberto sorri e faz um galanteio. Carolina foge dali em pensamento. Volta à viagem para Copenhague, um dia feliz com Francisco, desvendando as belezas da Dinamarca, as avenidas largas, um povo bonito, loiro, a profusão de bicicletas, as barcas percorrendo os canais, o sol forte. Francisco para em um quiosque no meio da praça e diz que ela precisa provar uma delícia típica da cidade. E vem de lá com uma ‘corda’ escura. Ela, feliz, coloca um pedaço na boca e sente novamente aquele arrepio: é bala de alcaçuz. Queria cuspir, uma, duas, três vezes. E mesmo que Dona Laura não esteja ali para repreendê-la, o amor por Francisco faz com que engula a bala, como uma prova de amor. Afinal, ele adora esse sabor.
O alcaçuz, descobriu depois, tem um princípio ativo, a glicirrizina, que é 50 vezes mais doce que o açúcar, mas que deixa um sabor na boca que desencoraja muitas pessoas. Por isso, as cordas doces de alcaçuz contêm mais anis que alcaçuz. Intragável destino. E o pior é que o sacrifício por amor não valeu a pena, Francisco a deixou logo que voltaram a Espanha. Simplesmente se apaixonou por outra, que ninguém sabe se gostava de alcaçuz.
Carolina é trazida de volta pelo comentário de Roberto. Será que ela gostaria de comer alguma coisa. Como dizer não, sem deixar transparecer a antipatia latente.
O almoço está disposto em longas mesas com inúmeras opções de pratos. O colorido combina com a variedade de legumes, verduras, carnes, saladas. Carolina percorre rapidamente com o olhar tentando identificar o mais a agradaria. Odeia ter tantas opções. Como é difícil escolher. Ainda indecisa, vê Roberto ir direto à travessa de peixe. O robalo brilhante parece perfeitamente cozido. As batatas douradas exalam um perfume de manteiga noisette, aquele doce aroma de avelã. Carolina se aproxima mais um pouco. Quem sabe ela e Roberto finalmente possam ter algo em comum. O peixe é realmente uma boa opção, tem um molho denso, consistente, salpicado de alcaparras.
Os dois se servem com vontade, pegam uma taça de espumante e Carolina consegue até brindar esse encontro. O Curaçau Blue parece ter ficado no passado, esquecido.
Quem sabe uma sobremesa, para adoçar ainda mais a vida. Uma ideia bem-vinda. A mesa de doces é tão farta como as de comida. Carolina novamente indecisa. Roberto não. Entre tantos quindins, pudins, mousses, profusões de frutas, tentações de chocolate, lança mão de um parfait de baunilha. Carolina continua sem saber o que escolher. Roberto diz experimenta esse parfait, como diz o nome, está perfeito. Mergulha a colher na pequena cumbuca de louça laranja, pesca um pedaço do parfait e da calda dourada que adorna e oferece a Carolina, acompanhado de um largo sorriso, aquele que ela conhece bem. Carolina finalmente devolve o sorriso e recebe o doce. E o gosto toma conta de toda a sua boca, de seu corpo, sua mente. Meu Deus, a calda é de anis-estrelado.
Tudo fica azul. O céu, os delicados, a bala de alcaçuz, Dona Lurdes, Francisco, o Curaçau Blue. Se sente tomada por dezenas de arrepios. Ela odeia anis, odeia esse sabor, essa imposição, os grilhões da boa educação, o abandono, traição. Odeia Roberto. Cospe uma, duas, três vezes. Precisa se livrar de todo aquele azul. Vai embora com a certeza de que é preciso respeitar a antipatia à primeira vista.